quinta-feira, 19 de março de 2015

Um percurso saramaguiano




No dia 17 de março, na Escola Secundária de Latino Coelho, pudemos assistir a um momento pleno de sabedoria e de encontro com as palavras que nos foi proporcionado pelo senhor Dr. João Paulo Fonseca, professor de Português e de Literatura Portuguesa. Esta atividade inseriu-se na Semana da Leitura do Agrupamento de Escolas Latino Coelho, Lamego.
A paixão e o entusiasmo com que dissertou sobre José Saramago, vida e obra, através de percursos literários a propósito da obra saramaguiana, despertou a atenção e o interesse de quem o ouviu. Estaríamos, com toda a certeza, muito mais tempo para aprendermos sobre este ilustre escritor português e prémio Nobel da Literatura…
Partilhamos alguns aspetos mais relevantes da sua intervenção e que gostaríamos de aqui deixar para todos os que nos leem. Vale a pena a cultura, vale a pena apreciar estas palavras de sapiência.


Viagem(ns) em Saramago


A adoção de uma perspetiva global de leitura e enquadramento da obra de Saramago leva-nos, em primeiro lugar, a uma reflexão diacrónica sob a evolução do estilo narrativo, tendo como referência algumas datas e obras incontornáveis: 1947, Terra do Pecado, primeiro romance do autor, todavia sem impacto significativo na época e, durante algum tempo, quase renegado pelo autor; 1977, Manual de Pintura e Caligrafia, obra em que o autor busca a sua própria identidade de escritor (pouco tempo após ter saído do jornal Diário de Notícias e ter decidido dedicar-se em exclusivo à escrita literária); 1980, Levantado do Chão, obra que consagra uma forma diferente, original e única de narrar histórias, a que chamarei a língua portuguesa de Saramago; 1982, Memorial do Convento, obra que, definitivamente, consagra Saramago como grande escritor. Em segundo lugar, dentro da evolução temática saramaguiana, há que distinguir as seguintes abordagens: um olhar crítico sobre a História, apontando o futuro como lugar único onde se podem corrigir os erros do passado; o papel do narrador/autor enquanto entidade harmonizadora da História e da narrativa que se pretende ser capaz de desassossegar; a viagem, enquanto processo de construção da identidade pessoal – dentro de si, mas também através da alteridade, do outro – e de uma identidade coletiva, enquanto sociedade; o uso do fantástico, enqua
nto registo modal, como estratégia narrativa capaz de persuadir o leitor à reflexão; a afirmação de um conjunto de princípios antropológicos, ou, se quisermos, de uma espiritualidade humanista, baseada na declaração universal dos direitos do homem. Nesta apresentação, deter-nos-emos, apenas e por uma questão de tempo, sobre o estilo saramaguiano ou a língua portuguesa de saramago e a viagem, enquanto processo de busca de uma identidade pessoal e coletiva.
A língua portuguesa de saramago, tal como ela está em Levantado do Chão e a partir daí, é uma escrita assente no princípio de que tudo aquilo que é dito é para ser ouvido, mesmo se entre um e outro a escrita serve de mediadora. Logo, a escrita torna-se simultaneamente mais económica e complexa, na medida em que tudo o que o escritor poupa terá que ser colocado no texto pelo leitor, como, por exemplo, o ponto de interrogação ou os verbos introdutores do discurso direto. (…)
Há uma ligação profunda entre o estilo saramaguiano de escrever a língua portuguesa e a forma como, oralmente, se conta a história vivida pelas pessoas e, depois, pelas personagens. Não esquecer, por fim, que este carácter oral advém à escrita também como consequência do gosto musical do autor e das influências da oratória vieirina barroca que se evidenciam bastante em obras como Memorial do Convento.
Parte significativa da obra de Saramago enquadra-se numa longa tradição da história da literatura: a literatura de viagens. Se tivermos em conta as crónicas presentes em A Bagagem do Viajante (1973), as narrativas presentes em Viagem a Portugal (1981); A Jangada de Pedra (1986) e a Viagem do Elefante (2008), constatamos que a força motriz da narrativa (nas três últimas) é a viagem enquanto processo físico de deslocação entre dois pontos. Mas também a viagem interior está presente nestas obras, assim como em Todos os Nomes (1997) e O Homem Duplicado (2002). (…)
A obra literária de José Saramago é o resultado de um percurso (viagem…) único e irrepetível levado a cabo pelo primeiro nobel da língua portuguesa. Nela se configuram opções ideológicas assumidas na primeira pessoa pelo seu autor/narrador, nomeadamente, a possibilidade – única possibilidade – de o homem corrigir a História no futuro; a desgraçada nódoa que, em nome de deus, os homens se impõem uns aos outros; a igualdade fundamental de todos os seres humanos, sem qualquer tipo de discriminação; o direito igual e fundamental aos bens materiais e amorosos essenciais a todo o ser humano. Tudo isto está numa obra literária que, sempre que lida, se continua a fazer ouvir.


Dr. João Paulo Fonseca
Escola Secundária de Latino Coelho, Lamego




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